domingo

Olhos de medo

São exatamente duas da madrugada. Cochilo dentro de um ônibus que segue para o subúrbio carioca. Há quase dois minutos pronunciava lenta e confiante “Tenho o corpo fechado”. Há quase duas horas terminava a sessão de cinema. Lá pude ver sangue, pipoca, compartilhamento de uma mesma ansiedade, brancos, negros, casais ou simples solitários de meia-idade. Jovens e adultos que buscavam assistir ao filme em moda. Dividimos o mesmo teto de um antigo cinema no centro da cidade por quase duas horas.
Vinte minutos antes da sessão, enquanto esperava apenas mais um daqueles que permaneceria ao meu lado, sorrindo, suspirando, e se divertindo com sangue durante a exibição do filme, conversava com uma criança. Sim, um daqueles pequenos anjos que estão em todos os lugares, com seus olhares especiais, enigmáticos. Carregam caixas pequenas, reforçadas com fitas adesivas. Dentro delas, drops e chicletes. Autodenominam-se seus sobrinhos no momento da abordagem.
Aquela disse que morava longe dali e que iria embora cedo. Cedo? Eram oito horas da noite, e questionei o que seria o seu cedo. Tinha nove ou dez anos, cinco irmãos. Todos com nomes que rimavam tanto como uma canção encomendada. Algumas das frases mais incríveis que ouvi foi “Agora que eu tenho papi, volto pra casa mais cedo. Você sabe o que é papi?”. Falava, enquanto saboreava um churrasquinho. Pensei que pudesse ser a sua primeira refeição do dia. Não quis pensar muito nisso.
Fui interrompida pela chegada de minha companhia. Chegou sorrindo, sorrindo. Sorrimos, os três. A menina pôde participar de nosso sorriso por alguns instantes. Fomos embora e como se ela nunca tivesse visto esse casal, abordou-nos em frente à bilheteria com a já conhecida e certeira frase “Tio, compra um doce pra me ajudar?”. Os tios quase sempre não resistem. Não resistiríamos. Não resistimos.
Dentro do ônibus lotado, não sabia que horas eram. Não podia limitar o verdadeiro. Sonhava e, então, não podia limitar. Sob efeito da cerveja, remédios para alergia, alegria, paixão, cochilava. Sonhava um sonho bom. Não lembro de nada, mas sei que sonhava.
E foi aí que se deu. Explosão! Cheiro de pólvora, correria, jogar-se ao chão. “O que faço? Estou tão longe de casa. Estou tão longe de todos.” Cheiro de pólvora. Pavor. Uma mulher grita, um homem grita. Posso ver seus olhos. Todos gritam, menos eu. Não quis gritar. Talvez tenha me sentido à vontade naquela situação.
Duas horas antes. Cinema, sangue, pipoca, morte, diversão. Agora: medo. O cheiro de sangue me contamina. Vejo que há um homem morto. Um corpo. Uma poça, não de chuva, aquelas que gostava de saltar. Diferente daquelas que gostava de brincar na infância. De lama, água da chuva. De sangue. Alguém com uma arma atirou. Explosão. Olhos que quase saltaram. Meus olhos de medo são diferentes. Sei que não vou morrer. Quase cinqüenta pessoas gritam juntas em uníssono desespero, medo de morrer, e eu: silêncio de espectador.