terça-feira

Inverno

Sorriu quando se levantou do sofá. Pôs-se a dançar ao ritmo de uma banda dos anos setenta. Era uma de suas preferidas, e após o terceiro ou quarto drinque, tornava-se o maior fã de rock de todo o mundo.
Retirou o pequeno pacote do bolso e despejou três finas camadas de um pó branco sobre a mesa de centro, de vidro. Não sabia que andava se drogando. Não o questionei ou tampouco o reprimi. Naquela tarde, sabia que iria morrer um pouco, e experimentar mais um artifício em prol da instantânea alegria, não faria mal.
Sorriu, tomou seu canudinho improvisado e aspirou metade da primeira fileira com a narina esquerda. Pude ouvir o barulho seguido de um suspiro de satisfação. A outra metade, com a narina direita. Sorriu, novamente, e com um movimento de cabeça, mostrou que era a minha vez. Tentei copiá-lo. Inclinei-me diante da mesa, segurei o canudo. Levantei e sorri. Não retribuiu com outro. No entanto, percebi, novamente, o consentimento em sua expressão. Então, segura do que estaria a fazer dentro de poucos segundos, voltei à posição inicial e sorvi a primeira de tantas fileiras de cocaína de minha vida. Levantei os olhos, e não havia ninguém ali. Eufórica, com o coração disparado, fui para a segunda. Tudo ficou mais sensível. Ergui-me com um sorriso reticente. Dançando o rock dos anos setenta. Preenchida por uma felicidade esfuziante. O momento parecia eterno. O coração disparado.
Acordei às três da madrugada. “Que sonho estranho!”. Bocejava. O vento assobiava uma nova canção. Sabia que iria chover dentro de poucos minutos. Sempre tive medo de chuva. Os relâmpagos nunca me trouxeram boas recordações. Lembram minha infância de menina que se divertia sozinha em casa. Olhar pela janela por horas. Lembram daquela fase em que comecei a perceber que estava só. Sempre que chove, a mesma cena. Dez anos, do céu tombam gotas finas de uma chuva sofrida de inverno. Daquelas que duram horas, como lágrimas de sentimentos sofridos, incubados por muito tempo, reprimidos.
Embaço o vidro da janela com minha tranqüila respiração. Posso ouvi-la e nada mais. O relógio avança para além das três da madrugada. Fico ali. Em apenas mais um pensar em nada das frias madrugadas de julho. Eu e algum vento...

3 comentários:

Anônimo disse...

Poxa...Legal porém Triste.

Priscila de Oliveira disse...

lindo, lindo! Não vejo esse "porém" aqui, porque enxergo beleza NO triste... Ainda mais uma tristeza tão belamente captada por uma escrita de quem é sensível ao que está em volta.

=***

Unknown disse...

"Inverno" :Esse é escolhido como o melhor pra mim, assim como vejo "A Queda" como a obra prima da sua irmã...: )