quinta-feira

Memórias de uma noite inacabada

Tantas luzes, pessoas, músicas. Bebidas destiladas, idéias destiladas. Horas antes, sorrisos, muitos. Tudo em demasia, num exagero necessário. Numa cena bela e suja, fétida e perfumada. Numa harmoniosa convivência de opostos.
Na mesa, nas tais horas antes, fotografias. Fotografias para não nos esquecermos de como havia sido o começo de tudo.
Estávamos visivelmente felizes. O que saltava da superfície do grupo de amigos era aquela felicidade boba, que surge como se esvai, aos poucos, por meio do líquido colorido pedido ao garçom que demorava, mas até que vinha.
E eu sabia: ela queria um dia de destruição. Pela voz alta, pelo decote, pela declarada falta de limitações naquela noite. Nada de abraços, afagos e carinhos instantâneos. Amores descartáveis, trocas desnecessárias de telefones, nomes, olhares.
Foi quando subiu a escada, e se deparou com um buquê de rosas vermelhas. E falsas. Colheu uma daquelas como quem sentisse falta de um adorno.
Juntos, como recompensa, nos deparamos com o céu. Não havia estrelas nessa noite. O céu oprimia aqueles que o observavam: de um tom amarronzado, esfumaçado, sombrio.
Mas ela queria um dia de destruição e aquele era o cenário perfeito. Este desejo, incessante, crescia lentamente como o bolor que ataca todo o pacote de pão de forma.
Foi quando olhei pro lado. Você dançava ao som de um bate-estaca qualquer tal como um surdo-mudo que em movimentos espasmódicos se dissipa a si e joga energia no ar sem querer saber do ritmo certo ao qual deveria se entregar. A fumaça que saía do cigarro que repousava em seus dedos magros rebolava no ar. De sua cabeça, que às vezes pendia para um lado, emanava algo que não conseguia identificar. Tudo era tão cênico, fingido. O figurino que te vestia, o cenário, os olhares voltados para chão e até aqueles que ao teu redor pareciam ser apenas atores contratados para ocuparem os espaços em branco. Você não os retinha mais. Seus espaços estavam todos preenchidos e isso se tornava visível. Minuto a minuto. De minuciosa e velada observação.
Mas ela queria um dia de destruição. Descia as escadas com suas ágeis e naturalmente torneadas pernas. Olhava em todas as direções. Mas a imagem de sua cabeça pendendo para a direita, de seu sorriso de prazer solitário, de seu olhar uma doce violência opressora, invadia-me e já tomava conta do que eu pensava ser. Mas era apenas mais uma dose de destruição necessária. Na próxima semana tem mais, e eu espero. Espectador dela. Expectador. Dotado de uma subversiva curiosidade em relação a esses personagens, conclui sabiamente que o melhor a fazer era bater de leve nos bolsos, buscando as chaves de casa, agachar pra pegar o jornal de domingo, beber um café e dormir.

E tudo (de brincadeira) era uma vez...

Era uma noite de sábado e Alice não sabia pra onde ir. Mas sabia que precisava de algum lugar...
Ela colocou o seu melhor vestido e fez o melhor em relação a sua aparência de menina. Alice não gostava quando diminuíam mais ainda a sua idade.
Alice precisava dançar. E isso era uma certeza. Ela precisava afastar os seus fantasmas e dançar os expulsava. E pra bem longe...
Alice caminhou numa direção. Mas no meio do caminho, percebeu que não era pra ser assim e retornou de onde havia partido. Pensou por alguns minutos, sentada num banco de um ponto de ônibus. Levou exatos 15 minutos para escolher que iria pra não sei onde. Pegou o primeiro ônibus que apareceu e foi com cara de quem não quer nada. Alice não queria.
Retocou o batom cor de rosa e chamou a atenção dos passageiros. Ah, os passageiros...
Percebeu, minutos, tantas curvas depois, que passava por uma rua conhecida, pela casa de uma pessoa mais ou menos conhecida e sorriu, pensando que ela poderia não sabia o quê.
Mas Alice se mantinha calma. E sedenta. Bebeu um gole de sua garrafa de não-água e se viu no reflexo do vidro da janela daquele coletivo, cujo destino Alice desconhecia.
Era uma vez um viés. E tantos e outros mais. Uma cor, e outra e muitas. Era uma vez o silêncio. Era uma vez a vontade de ficar emudecida, sozinha, tranqüila, em paz.
Era uma vez um caminho. E tantos e outros. Pássaros cantando ao amanhecer de um domingo qualquer. E pessoas dormindo pelo chão, em bandos, aos tantos, na volta pra casa de Alice. E o frio que cortava a nuca e as orelhas. Era Alice do País das Maravilhas. Mas que Maravilhas? era Uma vez um breve sonho com personagens tão... Era uma vez um sonho. Alice no ônibus. Volta pra casa. Solidão, fome e frio. “Alice? Eu? Não, foi engano...”

sexta-feira

Prato do Dia

Para todos os visitantes curiosos e curiosos visitantes

Tinha nos lábios um batom com sabor de amora, duma tonalidade que combinava com o esmalte das unhas dos pés, cujos dedos redondos instigavam ao longe. Ela sorria um sorriso malicioso de quem sabe o que está por vir. Típico daqueles que sabem as cenas dos próximos capítulos. Era daquelas, daquelas que transpiram sexualidade.
Uma espécie de excitação crescente despertava os seus sentidos.
O coletivo que se afastava do subúrbio estava relativamente vazio. O suficiente para que ela, a santinha nos tempos do colégio de freiras, se permitisse a si algumas divagações eróticas. Ela morde os lábios. O vizinho do assento ao lado havia despertado com o celular, que berrava desesperadamente uma estridente canção.
Ela sorriu por causa do susto de seu vizinho de assento. Ao vê-lo assim, sobressaltado, recordou-se do sentimento que a tomava freqüentemente ao achar que num comentário de sua mãe estaria uma demonstração de que seu segredo havia sido descoberto.
Sua mãe comentava sobre as meninas do bairro, que se comportavam como vadias e isso a atormentava. Sua família acreditava na farsa criada de que trabalhava como recepcionista de um salão de cabeleireiros, em Copacabana. As unhas impecáveis e os cabelos sempre escovados corroboravam a mentira.
Continuava, sorria. Sabia o que estava por vir. Pensou, consigo mesma, sempre com o deboche nos lábios “Hoje é o dia do advogado-rico-bem-sucedido-filhinho-de-papai. Esse não come ninguém. Só quando paga. Mas até que ele...” O freio. Alguns gritos, palavrões. Na frente de seu ônibus, na mesma Avenida Brasil dos motéis baratos, onde a gorda com perfume Avon transara com o executivo jovem nem tão bem-sucedido, um acidente, uma cena corriqueira atravessava o caminho da jovem moradora do subúrbio carioca.
Um cochilo. Sonhos com cenas curtas, sobre as quais ela gostava de ficar pensando depois. Seu lado menina dizia “Vai, dorme um pouco mais. Pra poder sonhar...”.
Ela se sentia meio animal. Seu corpo era território do prazer alheio. Um prazer pago em algumas notas. Poucas, mas boas notas.
O que ela ensinava era de todos, todos sabiam fazer. As dificuldades levavam certas pessoas a procurarem por seus serviços. Ela vendia idéias. Das claras as obscuras, barrocas por assim dizer. Fingia ser algo que definitivamente não era. Ela não era somente uma. Ela era múltipla. A intelectual no ambiente acadêmico, pedante, mesquinho; a bondosa jovem no seio familiar, que se dedica à mãe como a si mesma; a puta, na cama, com estranhos quase sempre; a paciente no ponto de ônibus esperando a última viagem. E tantas outras que já havia encontrado em si e muitas que ainda encontraria. Efêmera, eterna e progressivamente...