segunda-feira

Crônica de uma infância caduca





Para meu avô, Francelino (in memoriam)

Os dias estavam quentes. As férias se arrastavam. Brincar de elástico, rodar bambolê. Verão. A moleza no corpo depois do almoço cedia lugar à agitação advinda da compra de picolés “de sobremesa”. De frutas. Doces e tropicais como nunca. E sempre repetidos.
E eu era menina-moleque de shorts vermelhos e sem camisa. Nenhuma malícia. Corria entre meninos, subia na mangueira para fazer pose para as fotografias, comia batom da mamãe no banheiro (mas também com aquele sabor de chocolate...).
Foi quando, num domingo qualquer, no começo da manhã, avistei ao longe fruta que não conhecia. E eram muitas. E de um vermelho vivo e vistoso. Vermelhas, pequenas, delicadas, eram suas condições.
A menina curiosa, cabelos dourados e curtos, macios como a clara do suspiro de limão que a vovó preparava. A sobrancelha num movimento brusco de curiosidade aguçada subia e descia, subia e descia, e subia. A menina curiosa, dedos queimados pela cruel lagarta verde musgo do pé de banana, quis saber se eram de brinquedo. Vovô respondeu que eram tomates para crianças. E nunca mais se viu tomates naquela terra.

sexta-feira

Poema-canção


A cartada final
Poucos segundos
O fim da linha
A gota d’água
O dedo que se prepara para puxar o gatilho...................
A imprecisão
A agulha fina
A dor
O medo do mesmo
O suicídio diário
O medo de alguma dor

segunda-feira

Sábado de Carnaval

A mesa está posta. O café está pronto. As mãos vazias. Os copos cheios. As bocas lotadas. De sorrisos gastos. De mordidas bem dadas. E era tanto. E era aos poucos. E era final de um dia novamente. E era o jogo. Os naipes de sempre em cores diferentes. Confetes cujas nuances lembravam as usadas na infância. E era o carnaval. E o que era eu? Por debaixo da máscara e dos véus. Por trás de tanto fel, os dias de carnaval, longos, frescos, embriagados, o que eram? E eram verdes. E eram dois. Os olhos que se colocaram no meio de meu caminho de tantos como eu. E olhavam fundo, lá dentro, como que numa viagem de leitura rápida daquilo que eu sou. E tudo se encaixava. Tal qual cena de cinema, aquele close perfeito do cantinho da boca. E eu era um e depois, dois. E eu era dois e era tudo frívolo, seco, rápido como uma jogada bem pensada. E eu era um.

domingo

D'água escoam lembranças

Chove há dez dias. Não sei por que, mas lembrei de quando era apenas uma criança estranha. Aos nove ou dez anos de idade, estudava em uma escola. Normalmente, crianças dessa idade estudam. Não, eu poderia não estudar ainda aos nove ou dez anos de idade. O caso é que aos nove ou dez anos de idade, quando estudava em uma escola, experenciei algo que não deveria ter experenciado. Não aos nove ou dez anos de idade. Nem tanto pela idade, ou pelo acontecido, mas por ter começado a perceber que era espectador.
Na tal escola, havia centenas de crianças aos nove ou dez anos de idade, com todas as questões de crianças dessa faixa de idade. Eu, desde então, aprendi a me sentir à margem. Crianças à margem sentam-se sozinhas na hora do recreio. Com suas tímidas lancheiras, saboreiam o que lhes foi preparado pela tímida mãe que, em casa, aguarda o retorno de sua criança estranha que, para ela, não tem nada de estranho.
Um dia, estava frio, consigo lembrar. Sempre estranhei o inverno. Sentada em um de meus preferidos lugares, abri minha lancheira azul, a fim de saborear meu lanche de criança. Meus amigos aguardavam ser o próximo da fila da cantina, e assim, exibirem uns aos outros, os seus lanches de adulto. Eu permanecia criança, levando lanche de casa, preparado pela tímida mãe, que nessa época, aos nove ou dez anos de idade, me ensinara a atravessar a rua, e alguns dias depois, a voltar sozinha para casa, segurando minha irmã pela braço, olhando para um lado e para o outro. Aos nove ou dez anos de idade. Aprendi a me virar tão cedo... Lembro da cena de quando rompi, de certa forma, uma das barreiras. Nessa época, eu nem sabia o que isso significava. Mas o que importa?
No pátio, a obscuridade das crianças tímidas se realiza de forma mais intensa: todas sentadas com suas lancheiras abertas a saborear os lanches com mãos tímidas de crianças de nove ou dez anos de idade. De crianças.
Demoro. A cena que dentro de minutos completarei não é tela fácil de ser pintada. O banco. Desde a minha infância, sabia que teria um banco em qualquer lugar que eu fosse para que, sentada, pudesse ler, pensar, sorrir dos outros que passam, e ainda, esperar por algo que demoraria a vir. Eu. No banco a meia-luz, a criança de longos cabelos loiros, saboreia o lanche preparado pela mãe, que não carrega cabelos loiros. Sozinha. Caminham pra lá e para cá as crianças que foram o próximo daquela fila. Quase nunca a criança dos longos cabelos loiros esteve nesse lugar.
Estranha. A criança dos cabelos loiros ouvia os “ouis” e “iás” das amiguinhas que já aos nove ou dez anos de idade aventuravam-se em línguas estranhas. Na fila, de volta da hora do recreio, ouvia os exageros das pequenas madames de menos de 1,50m. Reclamavam dos cabelos, das roupas e da troca de carro do pai. Não iriam viajar naquela semana. Que triste...
Estranho. Na sala de aula, sentada na primeira fileira, a menina de nove ou dez anos, e cabelos loiros e longos, que fui. A menina quer sair dali, ir para outro lugar.

sábado

Sobre o acúmulo das coisas

Rose precisa de alguém que a ajude a amarrar os cadarços dos tênis coloridos. Alguém que a ajude na difícil arte de encontrar os buracos dos braços ao vestir um casaco. Rose quer alguém que a ensine a desamassar os cigarros e a acendê-los também. Rose quer parar de fumar, mas já acorda procurando o maço ou o que resta da noite anterior. E busca, tateando levemente o criado mudo, surdo e cego, os óculos cuja armação torta pede aposentadoria por tempo de serviço. Rose quer trocar de casa, de pele, de vida. Quer mudar de apartamento, de cidade, de planeta. Rose quer um estímulo. Rose bebe demais. Vodca com qualquer coisa para sorrir demais, para parecer. Feliz. Rose acorda, procura os óculos, um chocolate nem sempre quente, uma abraço inevitável, “bom dia”, “até mais”. E sempre isso. E somente isso e nada mais. Rose se cansa. Dos cheiros, sabores, manias, frivolidades. Enlouquece de repetição. E volta para casa, operadora de telemarketing, gerundismos mecanizados, “estarei enviando”, “senhor”, “senhora”. O retorno para o conjugado no centro de uma cidade qualquer. Unhas vermelhas, cabelos cuidadosamente arrumados, salto alto, alguma dieta. Rose é uma mulher qualquer.