sábado

Sobre o acúmulo das coisas

Rose precisa de alguém que a ajude a amarrar os cadarços dos tênis coloridos. Alguém que a ajude na difícil arte de encontrar os buracos dos braços ao vestir um casaco. Rose quer alguém que a ensine a desamassar os cigarros e a acendê-los também. Rose quer parar de fumar, mas já acorda procurando o maço ou o que resta da noite anterior. E busca, tateando levemente o criado mudo, surdo e cego, os óculos cuja armação torta pede aposentadoria por tempo de serviço. Rose quer trocar de casa, de pele, de vida. Quer mudar de apartamento, de cidade, de planeta. Rose quer um estímulo. Rose bebe demais. Vodca com qualquer coisa para sorrir demais, para parecer. Feliz. Rose acorda, procura os óculos, um chocolate nem sempre quente, uma abraço inevitável, “bom dia”, “até mais”. E sempre isso. E somente isso e nada mais. Rose se cansa. Dos cheiros, sabores, manias, frivolidades. Enlouquece de repetição. E volta para casa, operadora de telemarketing, gerundismos mecanizados, “estarei enviando”, “senhor”, “senhora”. O retorno para o conjugado no centro de uma cidade qualquer. Unhas vermelhas, cabelos cuidadosamente arrumados, salto alto, alguma dieta. Rose é uma mulher qualquer.

5 comentários:

Priscila de Oliveira disse...

Rose é qualquer mulher (?)

Lindas e duras palavras, como sempre...

alineaimee disse...

bela descrição do cotidiano. conseguiste captar o lírico do embotado e isso não é fácil. bom trabalho! linkei vc

"Blog do Homem-Sentimento" disse...

gostei (muito) deste.
Beleza e dureza na dose certa...

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Deliciosamente descritivo...como disse o amigo aí de cima beleza e dureza na dose certa!!
Adorei