domingo

D'água escoam lembranças

Chove há dez dias. Não sei por que, mas lembrei de quando era apenas uma criança estranha. Aos nove ou dez anos de idade, estudava em uma escola. Normalmente, crianças dessa idade estudam. Não, eu poderia não estudar ainda aos nove ou dez anos de idade. O caso é que aos nove ou dez anos de idade, quando estudava em uma escola, experenciei algo que não deveria ter experenciado. Não aos nove ou dez anos de idade. Nem tanto pela idade, ou pelo acontecido, mas por ter começado a perceber que era espectador.
Na tal escola, havia centenas de crianças aos nove ou dez anos de idade, com todas as questões de crianças dessa faixa de idade. Eu, desde então, aprendi a me sentir à margem. Crianças à margem sentam-se sozinhas na hora do recreio. Com suas tímidas lancheiras, saboreiam o que lhes foi preparado pela tímida mãe que, em casa, aguarda o retorno de sua criança estranha que, para ela, não tem nada de estranho.
Um dia, estava frio, consigo lembrar. Sempre estranhei o inverno. Sentada em um de meus preferidos lugares, abri minha lancheira azul, a fim de saborear meu lanche de criança. Meus amigos aguardavam ser o próximo da fila da cantina, e assim, exibirem uns aos outros, os seus lanches de adulto. Eu permanecia criança, levando lanche de casa, preparado pela tímida mãe, que nessa época, aos nove ou dez anos de idade, me ensinara a atravessar a rua, e alguns dias depois, a voltar sozinha para casa, segurando minha irmã pela braço, olhando para um lado e para o outro. Aos nove ou dez anos de idade. Aprendi a me virar tão cedo... Lembro da cena de quando rompi, de certa forma, uma das barreiras. Nessa época, eu nem sabia o que isso significava. Mas o que importa?
No pátio, a obscuridade das crianças tímidas se realiza de forma mais intensa: todas sentadas com suas lancheiras abertas a saborear os lanches com mãos tímidas de crianças de nove ou dez anos de idade. De crianças.
Demoro. A cena que dentro de minutos completarei não é tela fácil de ser pintada. O banco. Desde a minha infância, sabia que teria um banco em qualquer lugar que eu fosse para que, sentada, pudesse ler, pensar, sorrir dos outros que passam, e ainda, esperar por algo que demoraria a vir. Eu. No banco a meia-luz, a criança de longos cabelos loiros, saboreia o lanche preparado pela mãe, que não carrega cabelos loiros. Sozinha. Caminham pra lá e para cá as crianças que foram o próximo daquela fila. Quase nunca a criança dos longos cabelos loiros esteve nesse lugar.
Estranha. A criança dos cabelos loiros ouvia os “ouis” e “iás” das amiguinhas que já aos nove ou dez anos de idade aventuravam-se em línguas estranhas. Na fila, de volta da hora do recreio, ouvia os exageros das pequenas madames de menos de 1,50m. Reclamavam dos cabelos, das roupas e da troca de carro do pai. Não iriam viajar naquela semana. Que triste...
Estranho. Na sala de aula, sentada na primeira fileira, a menina de nove ou dez anos, e cabelos loiros e longos, que fui. A menina quer sair dali, ir para outro lugar.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito legal!! Acho que a gente já conversou sobre isso... pareciam até que eram minhas lembranças!! Bjs

Priscila de Oliveira disse...

chorei e lembrei tanto... Acho que você anda parecendo comigo por aí de outros jeitos... Ou seria eu parecendo-me com você?!

alineaimee disse...

Lindo! Lembrei tanto da minha própria infância... Por que não envia um de seus contos para publicação no site Armadilha Poética? Sou colunista lá. O e-mail da editora da seção literária é beatriz@armadilhapoetica.com
Parabéns!